sábado, 13 de novembro de 2010

ZYLDA – UM TEATRO VIVO DE TEATRO

“Contei este caso para compartilhar com vocês uma idéia fundamental: o teatro não tem categorias, é sobre a vida. Este é o único ponto de partida, e além dele nada é realmente fundamental. Teatro é vida.”
(Peter Brook in A porta aberta)



Um teatro vivo de teatro. Um teatro aceso de centelhas. A teatralidade na matéria, na ossatura. Imantação da carne na carne. Energia vital em estado de intensificação, como quer Peter Brook. Relâmpago que atravessa a quarta parede e reverbere. Às vezes sutil como uma brisa ou impetuoso como o vento sul. Assim pode ser o teatro. Assim deve ser o teatro. Assim é Zylda Anunciou, É Apoteose!. O teatro pode, ainda, como ocorre com grande frenquência por aqui, ser pretensioso, irritante e provocar necrose no olhar, na pele, no logos e ludus. Mas o espetáculo Zylda Anunciou, É Apoteose! é uma alegria. Antes de seguirmos nossa meditação poética é preciso dizer que o espetáculo é resultado de uma pesquisa feita por, na sua grande maioria, estudantes de teatro, portanto iniciantes. Aí reside uma dupla alegria: ver atores que começam suas carreiras bem conduzidos, bem orientados e seguros de suas atuações. Vera Collaço e José Ronaldo Faleiro, que assinam a direção do primeiro musical feito por estudantes da UDESC, escolheram a figura da atriz Aracy Cortes, para compor o eixo-motivo do espetáculo que é mais uma homenagem ao teatro de revista que uma tentativa de biografar ou transpor para o palco a vida da atriz Zilda Espíndola, a Aracy Cortes. Para viver Zylda (com o y de Aracy) a atriz convidada foi a experiente Margarida Baird que ao lado de Sabrina Lermen e Gláucia Grígolo forma a tríade de ouro do teatro catarinense. O teatro de revista nasce no Brasil no final do século XIX e se estende até meados do século XX. Um dos autores mais importantes do gênero é Arthur de Azevedo, que assim definiu o gênero teatral que tanto praticou: "Pimenta sim, muita pimenta./ E quatro, ou cinco, ou seis lundus,/ Chalaças velhas, bolorentas,/ Pernas à mostra e seios nus". O gênero tem sim o caráter de zombaria, sátira e apresenta o caráter miscigenado do nosso Brasil. Ele revelava a hipocrisia da sociedade, suas taras e suas doenças. Também valoriza a exposição do corpo em tom sensual, jocoso e, às vezes, de maneira apelativa. Tudo, é claro, com um bom acompanhamento musical. É, igualmente, um teatro feito para o divertimento, para a blague. Zylda traz ao palco todos estes elementos. O espetáculo é apresentado em 20 quadros. Alguns deles são perfeitamente dispensáveis (A Insatisfeita e Consultório Médico, por exemplo) por estarem, de algum modo, fora de nosso contexto. Esses quadros geram um certo anacronismo no espetáculo. O quadro Balança Falante, embora faça uma crítica ao modelo de beleza e a preocupação exagerada com a estética do corpo, é o mais frágil sob o ponto de vista dramatúrgico. Outro quadro que viola um pouco o ritmo do espetáculo é o quadro Você conhece a Bahia?, um dos mais longos do trabalho e que produz uma quebra na força-vibração, da energia de Zylda. Mas estes pequenos detalhes não são suficientes para apagar toda arte que emana do trabalho. Os apontamentos acima não apresentam dano à tessitura poética criada pelo jovem elenco. Em Zylda há uma harmonia nos usos das principais características do teatro de revista o que demonstra que a pesquisa feita pode ser vista no tablado (como quer Patrice Pavis). Com cenário, figurino e iluminação bem feitos e executados, com uma certa irregularidade para o figurino, Zylda aparece para nos dizer que é possível sim fazer um teatro vivo dentro da universidade. É um espetáculo de iniciantes, é bem verdade, mas seguramente é um dos espetáculos mais bem realizados de tudo o que tem sido feito em termos de arte-educação em Santa Catarina. Além de apresentar um teatro vivo de teatro e inundar o público com sua força poético/musical a montagem de Zylda nos brinda com um grupo promissor de atores. São muitos os bons atores que o espetáculo apresenta, muitos deles em suas primeiras atuações. Mas os atores Bárbara Teles Cardoso, Ana Paula Beling (capaz de tornar o silêncio audível), Rhaisa Muniz (sobretudo no trabalho de clown), Anderson Luiz do Carmo e Pedro Coimbra destacam-se pelo pleno domínio do trabalho do ator, pela técnica apurada, pela capacidade de improviso (tão inerente ao teatro de revista) e por atuações de por inveja a muitos veteranos. Já a experiente Carin Dell’Antonio faz duas atuações memoráveis ao representar a personagem Cachaça e, sobretudo, pelo seu número junto ao publico. A dramaturgia do espetáculo é assinada por Vívian Coronato, Vera Collaço e Anderson Luiz do Carmo e revela que o grupo mergulhou a fundo no universo do teatro de revista, pois todos os quadros são autênticos quadros de teatro de revista. Maria Thereza Vargas afirma que o teatro amador “assume seriamente o compromisso de realizar montagens nem sempre viáveis para o teatro profissional. [...] Neste sentido, é o teatro amador uma das forças propulsoras da mudança e da atualização do panorama teatral.” Zylda é teatro vivo de teatro, teatro de experimento, teatro feito por quem ama teatro. Zylda é um ato de coragem de Vera Collaço e Ronaldo José Faleiro que, para além de prestar uma homenagem a Aracy Cortes, prestam uma homenagem ao teatro brasileiro. Zylda é, ainda, uma demonstração de que o essencial no teatro é o ator. Pela sua excelente preparação de ator, pela direção precisa e eficaz, pela energia que emana do palco, pela revelação de novos atores, pela escolha musical (de Lamartine Babo a Ary Barroso), pelo retorno da atriz Margarida Baird ao palco e pela entrada no universo do teatro de revista com simplicidade e honestidade Zylda é um trabalho para ser visto de olhos livres (Oswald de Andrade). E nos lembra a fala da diretora Jerusa Camões: “Fazer teatro [...] com diversão, sem grandes revoluções cênicas. Coisas que nos alegrassem a vida. Por isso éramos um grupo alegre e interessante”. Jerusa fala da sua experiência diante do Teatro Universitário, que na década de 1940, mesmo sendo um grupo estudantil e amador, vitalizou o teatro carioca. Por tudo isso Zylda é um teatro vivo feito de alegria. Zylda é teatro. E teatro é vida.

Sugestões de leitura

Salvyano Cavalvanti de Paiva: Viva o rebolado! vida e morte do teatro de revista brasileiro, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1991.

Peter Brook: A porta aberta, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008.

Bárbara Heliodora: O teatro explicado aos meus filhos, Rio de Janeiro, Agir, 2008.

Patrice Pavis: A análise dos espetáculos, São Paulo, Perspectiva, 2010.

Margot Berthold: História mundial do teatro, São Paulo, Perspectiva, 2006.

Gilberto Mendonça Teles, Vanguarda européia & modernismo brasileiro, Rio de Janeiro, Vozes, 2009.

Teixeira Coelho, Moderno Pós Moderno, São Paulo, Iluminuras, 2001.

Sábato Magaldi, Panorama do teatro brasileiro, São Paulo, Global, 1997.
Postado por Marco Vasques

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